“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver” Amyr Klink

sábado, 24 de setembro de 2011

El Chaltén - Cerro Fitz Roy

Satisfeitos com a passagem por El Calafate, eu e Kakau seguimos ao nosso próximo destino, um pequeno “pueblo” que dá acesso a uma famosa cadeia montanhosa, destacando-se Cerro Torre e Fitz Roy, bem como o Glacial Viedma que fica no lindo lago de mesmo nome.

A mesma paisagem se repetiu ao longo da viagem, solo árido com montanhas e picos nevados ao fundo, marca registrada na Patagonia. A Patagonia argentina é uma imensa área que forma um triangulo, representando quase um terço do território argentino, tendo Puerto Madryn e Bariloche como suas extremidades ao norte e Ushuaia no vértice ao extremo sul.

O nome 'Patagônia' se originou da palavra "Patagones" (homens de pés grandes) usado por Fernão de Magalhães para descrever o povo nativo como gigantes. Acredita-se atualmente que os patagones seriam os nativos tehuelches, que tinham uma altura média de 1,80 m, em comparação com os 1,55 m de média dos espanhóis da época.

A estrada cortava longas planicies de estepes, onde despassadamente se encontravam pedras enormes, as quais destoavam da paisagem. A simpática guia Jimena nos explicou que as pedras foram arrastadas de outros lugares no período gracial na medida que as geleiras avançavam. Observar os glaciais daqui dá uma outra visão e noção do que representavam os glaciais na época e sua influência na formação de vales, fiordes, lagoas, desfiladeiros, cavernas etc de hoje.

Nesta região está o espetacular “Campo de Hielo Sur”, a terceira maior extensão de gelo continental do mundo (área de 16.800 km²), situado entre Argentina e Chile, atrás apenas da Antárctida e da Groelândia. Uma parte significativa do campo de gelo se encontra protegida pelo parque argentino Parque Nacional Los Glaciares (onde Perito Moreno e El Chaltén se encontram) e pelos chilenos Parque Nacional Torres del Paine (já mencionamos) e Parque Nacional Bernardo O'Higgins.

Ao contornar todo lago Viedma, avistamos ao fundo a imponente cadeia montanhosa, cujo pico máximo é o Fitz Roy. Os passageiros do nosso onibus eram em sua maioria estrangeiros e todos sacaram suas respectivas máquinas fotográficas para registrar aquela visão mágica.

                                          Na estrada, a vista do Fitz Roy
A chegada ao vilarejo é realmente sensacional. El Chaltén está ao pé do Fitz Roy, cercada por montanhas menores e cortada por um rio. A estrada ruma em direção às montanhas, mas não é possível visualizar a vila. Somente quando realmente estamos muito próximos, diante de uma espécie de “portal” natural de pedra, é que se avista a pequena vila de quase 1 mil habitantes.
                                                Chegando em El Chaltén
A semi-cidade de El Chaltén é a única cidade localizada dentro do Parque Nacional Los Glaciares e se auto-denomina “Capital Nacional do Trekking”. Este pueblo se prepara para adquirir o título de cidade, cuja economia gira 100% em torno do turismo, com ritmo de crescimento surpreendente.

Hospedamo-nos num agradável “Bed & Breakfest” e decidimos trocar o almoço por uma trilha “curta”. Tinhamos consciência que ingressar em trilhas em regiões frias como esta requer prudência, haja vista que se perder até o anoitecer pode significar morte por hipotermia.

Buscamos informações junto ao “guarda-parque” local e pegamos uma trilha que dá visão lateral do Fitz Roy e frontal do Cerro Torre. O dia estava lindo e o guarda sugeriu aproveitarmos aquela condição favorável, haja vista que El Chaltén é mundialmente conhecida pela instabilidade climática, responsável pela morte de muitos escaladores, inclusive de um brasileiro recentemente (mais a frente mencionarei). Após uma boa caminhada, subindo as lindas montanhas, caminhando entre árvores retorcidas e alguns trechos sobre a neve, chegamos ao mirador indicado. Estasiados com aquele visual, sentamos para devorar nosso lanche, entorpecidos de endorfina.

                                                       A pequenina El Chalten





Ficamos tentados a seguir adiante, com vistas a alcançar o campo de gelo e o pé do Cerro Torre, onde há um grande lago totalmente congelado. Porém, na medida que encontrávamos pessoas que estavam voltando da caminhada, convencemo-nos a deixar a caminhada mais longa para o dia seguinte.

Esta decisão foi acertada por um lado e infeliz por outro aspecto. Correta porque a Kakau sentiu dores no joelho no retorno da caminhada curta, portanto, esticar o trajeto caminhando sobre a neve geraria um estresse indesejável. Entretanto, nossos planos de realizar uma longa caminhada no dia seguinte se frustrou, devido a brusca mudança climática naquela noite.

Aquele pequeno pueblo, localizado no semi-deserto e ao pé de pontiagudas montanhas, foi fortemente arrebatado por fortíssimos ventos que nos impressionaram, e, porque não dizer nos assustaram. A hospedagem onde estávamos literalmente chacoalhava. Durante toda noite tivemos que conviver com um alarme do aqueceder que disparava de tempos em tempos, avisando que o vento havia apagado a caldeira. Todas as construções naquela região dispõe de duplas portas e cômodos separados por outras portas, como medida preventiva em caso de quebra de portas e vidros. A gerente da hospedagem e xará da Karina nos disse que, em caso de acidente, se o vento circular livremente pela casa, há sérios riscos do telhado ser arrancado, razão pela qual todas as portas intermediárias deveriam permanecer fechadas em dias de fortes ventos, os quais eram constantes naquela região.

Naquela noite fomos dormir tarde, pois sabiamos que no dia seguinte não conseguiriamos fazer a trilha que desejávamos. Além dos ventos e chuva intermitente, todas as montanhas estavam completamente cobertas por nuvens, o que certamente tiraria o entusiasmo das trilhas. Ficamos lendo na internet a impressionante história do brasileiro que morreu naquelas montanhas em janeiro deste ano, Bernardo Collares. Ele era um escalador experiente, presidente da associação carioca de montanhismo, que perdeu sua vida no Fitz Roy.

Bernardo estava retornando do cume do Fitz Roy quando teve um grave acidente e machucou a região pélvica. Sua companheira, Kika, ajudou a acomodá-lo num platô e juntos decidiram que ela deveria descer para buscar ajuda. Ela enfrentou 40 rapéis sozinha, uma longa caminha na neve e após quase dois dias alcançou o refúgio. Entretanto, o tempo piorou e não foi possível enviar um resgate para Bernardo. Somente após quase um mês, uma equipe subiu para resgatar o corpo e não o encontrou, havia apenas alguns itens onde ele ficou deitado (uma foto foi tirada). Muita polêmica surgiu em torno deste episódio, destacando-se algumas cartas abertas publicadas na internet, como a escrita pela mãe do Bernardo, da Kika e a emocionante carta de despedida do irmão.

Esta história mecheu muito conosco. Chegamos a conversar com alguns locais sobre estes espisódio, os quais também nos relataram outra trágica morte naquele ano. Há uma tradicional expedição em El Chaltén que leva turistas pelo Campo de Gelo, durante 7 a 9 dias. Estas expedições são técnicas e conduzidas por guias locais experientes. Um grupo saiu em fevereiro, ciente de que enfrentariam apenas um dia de forte tempestade. No meio do caminho se preparam para ela, abrigando-se em suas barracas. Entretanto, a tempestade de neve ganhou uma magnitude maior que a esperada, atigindo-os em cheio. Os ventos destruiram as barracas e levaram todos os equipamentos. Um mexicano do grupo (42 anos) não resistiu e morreu de hipotermia. Curioso que um dos integrantes do grupo de 70 anos, havia desistido da expedição e retornou com um guia antes. Eles também foram atingidos pela tempestade, porém resistiram e foram resgatados a tempo.

No dia seguinte, fizemos uma trilha longa porém “light”, longe da neve e de qualquer risco de nos perdermos. Subimos outras montanhas rochosas para ver de perto o símbolo máximo da Cordilheira Andina, o Condor. Avistamos estas grandes aves plainando próximas às paredes de pedra, dando um show de leveza e perfeição. Ao atingirmos o ponto máximo das montanhas, deparamo-nos com uma fantástica paisagem, o Lago Viedma, o Glacial e as Montanhas nevadas. A Kakau se emocionou,  permanecemos sentados pelo tempo que o frio e o vento nos permitiram.